A PIDE arrancou-o da cama às quatro da madrugada e
encarcerou-o, sem culpa formada, no Aljube durante dois penosos meses. O
vizinho Luís era analfabeto mas muito aprendeu no convívio com outros presos
políticos. Na prisão encontrava-se também um anarquista francês, pessoa culta
disposta a partilhar saberes. O vizinho Luís começou a aprender francês, que na
altura era a língua franca por excelência. Quando regressou, o vizinho
transmitiu-me muitos conhecimentos que absorvi avidamente. Mais tarde, já na
escola secundária o professor de francês, logo na primeira, aula falou de
“pomes” e de “oranges”, perguntando se alguém conhecia nomes de outras frutas.
O petiz que então eu ainda era, levantou timidamente o braço direito e
balbuciou “raisins”. As uvas, na designação gaulesa que o salineiro analfabeto
me tinha ensinado, foram a minha coroa de glória nesse dia inesquecível.
Começo assim a falar de uvas, vinhas, cepas, e videiras, mas
não de vinhos, cujos teores alcoólicos me podem subir à cabeça e obliterar a limpidez
dos pensamentos. Aliás, de vinhos têm os leitores vasta informação sabiamente
manejada pelas vias mediáticas da instrumentaria consumista. Todavia, para quem
quiser saber das virtudes filosóficas, sociológicas e quiçá culturais da bebida
de Baco, recomendo tão-somente a leitura da obra “Tabernas”, primorosamente
editada pela Câmara Municipal de Grândola. Mas, por agora, não irei aqui
discutir se o vinho é bom ou mau para o bem-estar dos consumidores e apenas me
cingirei à videira como notável planta medicinal.
Julga-se que videira é originária do próximo oriente sendo
conhecida desde a época neolítica. Daí propagou-se pelos países da bacia
mediterrânica e mais tarde por todas as regiões de clima temperado. Atualmente
a Vitis vinifera, da família das Vitaceae, agrega mais de cinco mil variedades denominadas castas. É arbusto trepador de tronco retorcido
(cepa) e vivaz com folhas palmadas, alternadas e caducas. A planta é
semilenhosa e, se não for podada, o que acontece anualmente, pode atingir 30
metros de extensão. De resto, toda a gente conhece as videiras devido aos seus atraentes
bagos (uvas) de cores negras, roxas, carmesins ou douradas. O sumo da uva não
fermentado é rico em açúcares, proteínas, vitaminas do complexo B, C, P,
betacaroteno, ferro, potássio e ácidos orgânicos. As folhas e as sementes
(grainhas) possuem importantes flavonóides, pigmentos, taninos e lípidos de
elevado interesse medicinal.
O meu saudoso amigo Dr. António Cardoso, ilustre ativista da
Sociedade Portuguesa de Naturalogia, não se cansava de gabar os méritos da cura
de uvas como um dos melhores meios para depurar o organismo sem o debilitar.
Consiste na simples ingestão diária de 1 a 3 kg de uvas bem maduras como único
alimento durante, pelo menos, três dias seguidos. Este tratamento proporciona
substanciais alívios a quem padece de artritismo, hipertensão, colesterol,
doenças renais, obesidade, hemorroidal, afeções hepáticas, anemia, esgotamento,
astenia, ansiedade…
O óleo obtido da expressão a frio das grainhas das uvas, para
além do seu interesse alimentar, é também aconselhado para reduzir o colesterol
LDL e aumentar o HDL, devido à sua riqueza em ácidos gordos polinsaturados.
A seiva da videira, denominada “água de cepas” que se obtém
do “choro” dos sarmentos primaveris, possui propriedades anti-inflamatórias e
cicatrizantes. Desde remotos tempos tem sido usada para curar problemas
cutâneos (eczemas, erupções e irritações várias) e sobretudo, para desinflamar
os olhos em situações de conjuntivites, terçóis, blefarites e queratites (inflamações
da córnea).
As folhas jovens, não tratadas com agroquímicos, são
comestíveis. Na Roménia, Grécia, Turquia e noutros países, preparam-se acepipes
deliciosos revestidos pelas parras das videiras. Para tratamento de
hemorroidas, frieiras, varizes, cansaço e inchaço das pernas e demais
transtornos circulatórios venosos, alcançam-se efeitos benéficos através dos
banhos de pés (pedilúvios) com decocção de folhas de videira, alternando águas
quentes e frias. Jorge Pamplona Roger na sua enciclopédia “A Saúde pelas
Plantas Medicinais” acrescenta que, tomando o “chá”, proporcionado pela
decocção das folhas, reforça-se o efeito do citado tratamento (40 a 50 de
folhas por litro de água para tomar 3 ou 4 chávenas diariamente antes das
principais refeições).
Há ainda uma referência ao pó das folhas secas para inalação
a fim de se estancarem as hemorragias nasais.
Com tudo isto, quase nos esquecemos que das uvas também se faz vinho e do vinho se faz vinagre, com comprovadas propriedades antissépticas.
Junho de 2021
Miguel Boieiro
(texto da autoria de Miguel Boieiro, Vice-presidente da Direção da SPN)
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