Lançamento Oficial do Livro À Portuguesa: Receitas em Livros Estrangeiros até 1900
«Embora seja um livro mais relacionado com a história
cultural da alimentação, os mais interessados vão puder experimentar algumas
receitas», relatou, desde logo, a Profª Doutora Inês de Ornellas e
Castro, no passado dia 15 de setembro, aquando do lançamento do livro “À
Portuguesa: receitas em Livros Estrangeiros até 1900” do autor Virgílio
Nogueiro Gomes, no Palácio Nacional da Ajuda, também na presença do Sr.
Diretor do Palácio Nacional da Ajuda José Alberto Julinha Ribeiro e da Doutora
Cristina Lourenço da Editora Marcador, em que eu tive o privilégio
de assistir!
E para um total de 6 anos de investigação, o livro primeiramente
investigado foi de 1604, enquanto o último foi quase 300 anos depois,
deixando-nos perceber como é que, afinal, autores estrangeiros, logo não
portugueses, ao ter sido feita uma recolha sistematizada de receitas, as designavam
de “à portuguesa”, ou seja, de Portugal, ou fazendo também uma simples referência
a algum produto que nós identificamos como sendo do nosso país!
Na verdade, o autor foi tendo um carinho muito especial por toda esta temática, devido à sua extrema curiosidade, ainda que lhe tivesse sido também bastante penoso, já que as 118 receitas selecionadas no livro são provenientes de 31 livros e, por sua vez, de 23 autores franceses, perfazendo 136 livros juntando os que ainda são mencionados na própria introdução.
Acrescente-se também que todo o receituário apresentado tem
uma grande particularidade: apresenta todas as receitas no seu formato original,
mas também a respetiva tradução logo a seguir, para além de incluir diversos
comentários precisos acerca de determinados termos utilizados na época, sendo,
assim, um trabalho bastante fácil de consultar!
Mais algumas notas importantes: as receitas mais antigas
começaram por ter só uma enumeração de ingredientes, porque só mais tarde é foi
introduzida a respetiva indicação do modo de as confecionar, e só depois ainda
é que surge a indicação das necessárias quantidades.
Por outro lado, os primeiros destinatários deste tipo de receituário
foram, profissionais de cozinha, sendo um «espelho» de como fomos então interpretados
ao longo de 300 anos de história, não pelas técnicas apresentadas, mas sim pelas
influências ou conhecimentos que detinham sobre nós, chegando-se à conclusão de
que, o que mais diferenciava a chamada «cozinha de elite», eram os produtos
utilizados, uma vez que muitas dessas receitas eram apenas adaptações de outras
já existentes.
E o que é que de facto fazia a diferença entre o nosso país
e os outros países europeus, por exemplo? Eram as classes sociais, a religião e,
sobretudo, a proveniência dos produtos, como acabou por acontecer com a questão
do açúcar, da laranja doce ou do tomate!
Por fim, termino esta minha introdução acerca da entrevista
que tive a honra de fazer ao estimado gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes,
transcrevendo parte do seu próprio discurso:
«Este livro é o resultado de uma curiosidade sobre a
pertinência da denominação de algumas receitas que nasceu comigo quando comecei
a estudar menus. Os menus aparecem no final do século XIX, e eu encontrava,
muitas vezes, dúvidas em relação às denominações de receitas, e de vez em
quando até em refeições muito importantes (…) mesmo nos menus de castelo de Windsor
e de Buckingham, aparecendo refeições delicadas como são as “galinholas à Dom
Manuel”, sendo uma forma de homenagear o convidado para esse palco, em que
havia receitas a quem se dava o nome das pessoas.»
Um Trabalho de Investigação que durou seis anos!
1. 1. Em primeiro lugar, pedia-lhe para explicar qual a origem do título do seu livro mais recente, ou seja, “À Portuguesa: Receitas em Livros Estrangeiros até 1900”.
Virgílio Nogueiro Gomes: O título deste livro é exatamente a síntese daquilo que é o livro: são receitas que tem a denominação de “À portuguesa” e que foram encontradas em livros estrangeiros antigos, portanto, até 1900. O título é claríssimo em relação ao conteúdo do próprio livro.
2. E como é que decorreu, afinal, todo esse trabalho de investigação que durou, tal como afirma aqui, seis anos?
Virgílio Nogueiro Gomes: Esta investigação durou 6 anos, porque eu tenho a data de quando comecei, em que isto vem de uma certa curiosidade minha a respeito destas nomeações que irei explicar mais à frente. Mas andei a «dar muitos tiros no escuro»: eu comecei por analisar livros espanhóis e franceses do século XIII, até que fui baixando para o século XIV, século XV, e só depois é que encontrei os primeiros livros do século XVII, sendo que a receita mais antiga é de 1604. Depois, no século XIX, encontrei muitas receitas, no século XVIII e XIX, também fantásticas, sobretudo da França, porque a moda da comida era a França e a França publicou imensos. Portanto, a maior parte dos livros são franceses e foi durante 6 anos, até que tinha de parar um dia e eu parei no princípio deste ano, em que a meio de janeiro eu pensei que já tinha conteúdo suficiente para fazer o livro e parei de investigar. E foi curiosamente há 1 mês que recebi um livro que tinha encomendado em novembro, pois eu acabei por virar-me para todo o mundo. Na Internet encontrava livros, fazendo supor que interessavam, entre outros que eu tinha a certeza que tinha de mandar vir, ou então já os tinha, por acaso, porque há sempre um enriquecimento, mesmo que não tenha receitas “à portuguesa” e, portanto, passam os 6 anos e quando o recebi o tal livro há 1 mês, já estava o livro a ser impresso, logo eu fiz uma crónica no meu site, pois eu achei que não valia a pena parar a impressão do livro.
1. 3. No que diz respeito aos trinta e um livros com cento e dezoito receitas que decide apresentar, qual é que foi aquele que mais lhe chamou à atenção e porquê?
Virgílio Nogueiro Gomes: Esta pergunta é muito difícil de
responder, pois eu devo dizer que os 3 primeiros livros foram, para mim, sobre
os que mais me apeteceu escrever e investigar, e que me deram muito trabalho a
investigar também.
O primeiro é de 1604, que é do chef de cozinha ao serviço dos
3 príncipes-bispos de Liège, em que Liège era uma cidade autónoma do império franco-germânico
pós-Carlos V que reportava diretamente ao Papa. E quando ele ficou conhecido,
porque ele fez o banquete da entronização do primeiro príncipe-bispo, chamou 2
receitas de “à portuguesa” que eu não encontrei semelhança com receitas nossas,
mas tentei ir buscar, naquela época ou naquele território, factos históricos que
tivessem contribuído para isso, ou por apenas existirem portugueses que
influenciassem, tal como aconteceu antes nas embaixadas de D. Carlos V. O
embaixador de D. João III foi uma pessoa muito influente nos Países Baixos e, então,
quando foi a celebração do nascimento do que iria ser o pai de D. Sebastião,
fez-se uma grande festa. Nós temos, no menu, aquilo que comeram e é possível
que algum português tivesse influenciado algo ou que ele tivesse aprendido
através de algum português e, por isso, dá-lhe o nome de “à portuguesa”.
O segundo livro foi um livro surpreendente, em que eu tive 2
pessoas que me perguntaram se eu já conhecia aquele livro: uma das pessoas foi Olga
Cavaleiro, enquanto, a outra, foi a Cristina Castro que está a fazer o
inventário da doçaria portuguesas. E eu fui à procura do livro, foi difícil,
mas eu encontrei uma edição francesa cuja tradução depois verifiquei não ser
simpática, pois estava demasiada atualizada ao século XXI. Depois consegui, num
leilão de um alfarrabista, um livro que tem a produção original do texto, no
qual eu vi que as receitas não eram exatamente iguais, portanto, as que estão
no meu livro são as que estão nesse livro antigo e não na edição atualizada, porque
não faz sentido.
E há um livro de Salamanca, do chef de cozinha de uma Universidade
de Salamanca, que me levou a uma receita de coelho que conhecemos hoje, mas
havia muita tradição de proximidade de Trás-os-Montes e da Beira Alta, de
respeitar a Universidade. Logo andei a fazer um estudo, que demorou muito tempo
a fazer, sobre a quantidade de alunos portugueses que houve naquele tempo na Universidade.
Foi o estudo mais violento, possivelmente, mas acabei por descobrir que no
decénio anterior à publicação do livro estiveram, na Universidade da Salamanca,
148 alunos de Miranda do Douro! Parece absurdo, Miranda do Douro (!?) porquê
(!?), por que não de Bragança (!?) Até que descobri que, nos estatutos da Universidade,
o registo dos alunos não era feito pela sua cidade do nascimento, mas pela
diocese a que pertenciam, porque a Universidade era titulada pela Igreja, portanto,
no século XVII, o bispado daquela região, que hoje chamamos de Trás-os-Montes, ainda
era de Miranda e de Bragança, pois só no século XVIII é que se passou a chamar-se
de diocese de Bragança, e é daí que surge a confusão.
O terceiro livro é de 1611, que é relativamente fácil de
consultar, porque tem 2 índices com objetivos diferentes. Depois houve um chef
francês de 1715 chamado Massialot, que eu acho que foi o primeiro a definir a
autenticidade da doçaria “à portuguesa” porque levava laranja, que era a
tradição da laranja doce que os portugueses espalharam na europa. Não se pode esquecer
que há 9 países portugueses no mediterrâneo em que a laranja se chama Portugal,
porque a laranja doce foi uma novidade na europa e foram os portugueses que a
levaram, e também muita vinha dos Açores.
E esses foram os livros que eu achei, enfim, mais curiosos e
que mais gozo me deram, porque os outros já eram um bocado repetitivos, ainda
que evidentemente estudados.
O Carême de 1815 e de 1833 é deslumbrante quando ele, para
descrever um molho, o molho de base que é o molho espanhol, ocupa 3 páginas e
acrescenta “não tem nada a ver com Espanha, eu é que gosto da palavra espanhol
e por isso escolhi este nome”. E depois tem o molho à portuguesa, e,
curiosamente, o molho à portuguesa tem 2 vinhos espanhóis, portanto existem algumas
contradições que não se entendem. Como o livro extraordinário do senhor Viard, em
1817, que tem um capítulo dedicado a vinhos, em que todo o grande senhor
francês percebe que tem de ter pelo menos estes vinhos, contendo alguns vinhos
portugueses, entre eles o Carcavelos, o Colares, o Bucelas, e depois o Porto,
naturalmente, Porto vírgula Portugal, e da Madeira, ainda que a seguir a Madeira
vírgula não identifique o nosso país, mas coloca África. Portanto, a informação
geográfica daquele tempo é confusa e nós temos de olhar com alguma cautela, não
dizendo logo que o homem escreveu disparates, porque os conceitos de geografia rigorosos
eram diferentes, e se calhar não sabia que era Portugal, porque o vinho da Madeira
no século XIX ainda era muito importante, não como vinho generoso para beber sozinho,
mas por ser o vinho mais importante na gastronomia francesa e inglesa para
temperar na cozinha, logo um vinho de excelência na cozinha. E talvez por isso,
por ser tão procurado e tão famoso, é que eu vou encontrar, e está publicado no
livro, uma receita para fazer vinho da Madeira falso, e que não é só dos
franceses, porque os portugueses, quando publicam um manual do destilador em Portugal
na segunda metade do século XIX, aparece exatamente a mesma receita em
português para fazer o vinho da Madeira falsificado, portanto nós não conhecemos
as mentalidades, nós se calhar não estudamos muito as circunstâncias do
conhecimento em cada um desses tempos, daí, aquilo que eles escreveram, eu às
vezes reproduzo-o textualmente porque foram eles que o escreveram, para acautelar
aquela tolerância da falta de conhecimento, pois o que é importante é que se
fale de Portugal!
Na minha introdução faço também algumas afirmações de pessoas
que escreveram no século XX, que são negativas para Portugal, mas depois vamos
ver isso…
4. Já agora, fazendo uma certa analogia entre as receitas que faz referência no seu livro e as que aparecem escritas hoje por aí, quais é que são as principais diferenças a ver, por exemplo, com a forma como eram escritas na altura e para quem é que normalmente eram dirigidas?
Virgílio Nogueiro Gomes: Há poucas analogias, pois a única
coisa que encontramos como coincidente é que, no final do século XIX, nas receitas
com designações “à portuguesa” contém tomate, algo redundante a partir de 1902
com Escoffier, que faz o primeiro guia culinário baseado no dicionário de Joseph
Favre, analisado no meu livro, em que tudo o que é “à portuguesa” é porque leva
tomate, apesar de lá conter 2 ou 3 receitas com tomate. E todas as pessoas que
depois o quiseram seguir, “à portuguesa” era porque levava tomate, portanto, estamos
a ver que as analogias eram muito poucas, a não ser no livro de 1611, um dos
mais maravilhosos que eu encontrei porque, para mim, apetece dizer que metade
daquele livro é português. O que é certo é que foi o chef de cozinha que
acompanhou Filipe II, quando fez uma estadia de 8 meses em Portugal, ele
conviveu com os portugueses e com a corte e cozinhava ainda para o rei, que,
naquela altura, era o Filipe III de Espanha e Filipe II de Portugal. Logo, ele
teve contacto com essas pessoas todas e há uma famosa receita que eu cito, os “espinafres
à portuguesa”, que é uma receita que se encontra relacionada com a zona dos
concelhos próximos do alto Alentejo e de Espanha, como Elvas, Alandroal e Vila Viçosa,
por ser uma prática domingueira.
E depois, a partir do século XVIII, quanto à prática de fazer
doces “à portuguesa” é porque, essencialmente, leva laranja, existindo outra
diferença ainda: há um grande chefe que acha que o grande molho Sorbet au
porto, o gelado de vinho do Porto, é um gelado de base, assumindo aqui também
que identifica o Porto de Portugal e, portanto, isso também é importante para
nós.
Estes textos eram dirigidos nomeadamente a profissionais de
cozinha, em que nós temos um livro que é muito engraçado, em francês, assinado
com o pseudónimo que Menon. Este livro é de 1786, tendo um título que faz
desconfiar: uma das pessoas que estudaram a sua bibliografia, e sobretudo o seu
autor que não se sabe quem é, há um francês que supõe que poderá ter sido uma
mulher a escrever, porque o título é La Cuisinière Bourgeoise, «A Cozinheira Burguesa»,
que é um principiante da revolução antes de Napoleão, cuja burguesia francesa
estaria a tomar muito peso, onde surge a cozinheira burguesa. E a propósito
deste livro, eu, por acaso, detenho o original.
Todos os 163 livros que são referenciados no meu livro estão na Biblioteca da ACPP, portanto, quem quiser ir mais longe, pode ir lá, exceto meia dúzia, que são originais, em que o de Menon é um deles, indo ficar na minha casa durante mais algum tempo!
5. Todos nós sabemos que Portugal apresenta, na sua gastronomia de referência, um certo conjunto de receitas clássicas que são também mundialmente conhecidas, tendo sido passadas de geração em geração, logo dando origem, ao longo do tempo, a pratos típicos em cada região, baseados por sua vez em cada produto endógeno. Por isso é que, na minha opinião, quando algum turista visita o nosso país, deve, sem dúvida, começar por degustar alguns desses mesmos pratos típicos, para desde logo ficar a conhecer qual a nossa verdadeira essência e o porquê de sermos como somos hoje, concorda?
Virgílio Nogueiro Gomes: Nós não encontramos, no nosso receituário
português, a transcrição deste receituário, mas chama-se “à portuguesa”, ou de Portugal,
porque deve ter tido alguma influência. Nós, por exemplo, La Chapelle, ele foi, durante
alguns meses, cozinheiro de D. João V, mas será que as receitas revelam muito
Portugal?! Muito possivelmente foram receitas que ele aprendeu cá, pois quando abrimos
um livro de Domingo Rodrigues de 1680, quantas receitas é que temos hoje na
nossa prática culinária? Muito poucas, que havia a preocupação culinária de
copiar a cozinha francesa, que era a moda e, portanto, por isso eu digo que
isto não é um livro de receitas, mas as receitas estão lá para justificar a
abordagem e este estudo acerca da sua designação.
Eu acho que, hoje, em Portugal, nós temos 2 tipos de cozinha:
uma que é mais ligada ao produto mais importante que nós temos, o peixe e o
bacalhau, que eu os separo sempre. Realmente, quanto ao peixe, o melhor é
cozinhá-lo o menos possível, grelhado ou assado no forno e ponto final; e
depois temos uma comida de tacho extraordinária, como as feijoadas, as caldeiradas
ou os guisados.
E nós não temos grandes pratos de carne de cozinha nobre, pois
temos o cozido, e há cozidos em toda a Europa, com carnes e enchidos diferentes;
mas o cozido é um pouco para aproveitar carnes, já que ninguém vai colocar um
bocado de lombo de vaca no cozido…
Ou seja: um tipo de cozinha é de produtos, o outro tipo de cozinha de tacho, e ainda temos os doces, onde estamos de parabéns, e não só os dos conventos…
7. Para mim, a culinária portuguesa tem sabido aproveitar muito bem a sua localização e diversidade geográfica, pois, com o devido acesso ao Atlântico e Mediterrâneo, os pratos portugueses têm recebido determinados saberes e técnicas de outros povos até hoje! Mas será que o chamado processo de “globalização”, trouxe também uma transformação global dos hábitos alimentares, levando à perda de “identidade”?
Virgílio Nogueiro Gomes: A globalização vem criar uma nova
identidade, em que há 20 anos era impensável metade do povo português comer pizza.
A pizza tem origem no século XII, sendo do tempo das cruzadas, pois era o pão
que eles traziam até Malta, tendo por essa razão as pizzas ter começado no sul
de Itália em Nápoles, que era onde eles paravam. E a primeira pizza e mais
famosa é a napolitana e, sobretudo, a margarita, tendo sido esta segunda a que
foi servida à Rainha Margarida. É que, quando a primeira Rainha de Espanha foi
a Nápoles, pediram para lhe entregar uma pizza e, então, o homem, de tão
atrapalhado que ficou, fez-lhe uma pizza mais simples, escolhendo 3 produtos
com as 3 cores da bandeira de Itália: o queijo, que é branco, o manjericão, que
é verde, e o tomate, que é vermelho.
Portanto, essas novas identidades estão sempre a acontecer, como acontece com o hambúrguer. Há muito cruzamento, como agora, também, a cozinha experimental, a cozinha de sensações, a cozinha de autor, etc, mas as pessoas acabam por vir sempre à cozinha chamada de conforto, à maneira como os educaram, como educaram o gosto…
8. Claro que, nomeadamente por causa da pandemia, novos dados foram lançados, reaparecendo a necessidade veemente de se afirmar, em conjunto, uma certa estratégia nacional, com o objetivo de tornar as nossas raízes no elemento diferenciador ligado ao território português, igualmente para ajudar a quebrar de vez o terrível impacto gerado pela COVID-19 nas áreas do turismo e da hotelaria, já que a dimensão imaterial da oferta é a nossa mais-valia ligada, por sua vez, à autenticidade e à genuinidade dos nossos pratos, muitos deles tão bem reconhecidos lá fora, não acha?
Virgílio Nogueiro Gomes: A covid-19 veio trazer uma nova
realidade também à cozinha portuguesa e, sobretudo, em Lisboa. Os restaurantes
que gostavam de trabalhar, em alguns deles continuou-se a trabalhar muito bem,
mas se calhar numa lista mais curta a ver com entregas ao domicílio. É certo
que, dentro de uma embalagem, é evidente que, nem todos os pratos dão para isso.
No Restaurante Nobre, no Campo Pequeno, em Lisboa, os pratos mais vendidos foram
a feijoada à transmontana e o cozido à portuguesa, o que nos coloca perante a
ambição de quem come em casa e quer ter a comida de conforto.
Houve outros restaurantes que também trabalharam muito bem,
como o Colina, e que, evidentemente, havia pratos que não fazia sentido, mas
que agora tem uma grande esplanada, que não existia, e, portanto, houve muitos
restaurantes que sempre trabalharam com a cozinha portuguesa e para os clientes
do bairro e não para os turistas.
A vida não correu bem a ninguém, pois só a angústia do
dia-a-dia das pessoas que morrem, com as cautelas do afastamento, mas houve
formas de sobrevivência, e para além da sobrevivência, e que resultou positivo.
Ninguém ficou milionário, mas eu conheço alguns restaurantes que não ficaram a perder,
e isso já é importante, logo o número de pratos e o tipo de pratos são encenados
de acordo com as circunstâncias, a embalagem, o transporte. Mas apareceram coisas
novas, em que existem agora empresas que entregam refeições ao domicílio em que
o cliente tem de acabar o prato em casa.
Eu, durante a pandemia, ia sempre ao restaurante levantar a
comida que levava para casa e eu depois finalizava à minha maneira; também havia
alguns pratos que ainda chegavam quentes a casa e por isso nem era preciso fazer
mais nada.
Nós nos adaptamos, mas as pessoas que estão em casa agrada-lhes mais a comida de conforto: uma forma, no fundo, de educação pelo gosto. Aqui ninguém reflete e educação do gosto, porque a comida por educação do gosto é a comida a que nós fomos habituados por rotinas caseiras, e as pessoas acabam sempre por fazer comparações. As pessoas foram levadas a recordarem de coisas do passado e a cozinhar pratos cada vez mais simples, muitas pessoas também redescobriram o que era cozinhar…
9. Para finalizar: qual é que irá ser o seu próximo livro ou projeto de outra índole?
Virgílio Nogueiro Gomes: Eu não sei estar parado e, quanto a
este livro, se calhar, a pandemia levou a que eu o terminasse já, mas,
entretanto, comecei a fazer outros trabalhos.
Andei a fazer um trabalho muito importante sobre a doçaria
portuguesa que usa gorduras, em que vamos chamar de não convencionais, como o
azeite e a banha de porco, acabando por apresentar um trabalho no Congresso dos
Cozinheiros. Mas não está publicado, pois o trabalho é complexo para publicar, e
se calhar não vai ser mesmo publicado, mas o trabalho está feito!
Traduzi um texto, que vai sair em abril, mas não é um livro,
é um livrinho: um texto de um polaco que visitou o Portugal rico, e que fez um
diário. O diário não é muito grande porque ele teve mais tempo em Espanha do
que em Portugal, mas eu isolei.
Traduzi um livro espanhol do século XIX que vai sair, fazendo
algumas referências à vivência em relação à alimentação, porque hospedou-se em Setúbal,
já que o rei estava lá, o D. João II, e houve um conflito relacionado com a
cozinha e o cozinheiro dele, porque ele tinha um cozinheiro privado, que se zangou
com a dona da cozinha, tendo esta partido uma colher de pau na cabeça dele, logo
existem sobretudo algumas histórias à volta da comida. Para além disso, ele
ficava surpreendido ao ver os nossos pomares, em Portugal, ele assistiu a uma
refeição de D João II, bem como a uma outra de D. Afonso na corte e, portanto, irá
ser um livrinho para se ficar a saber sobre o que já se pensava de nós em 1484!
Depois, ainda tenho outra investigação que estou a fazer, se
calhar motivada pelo que li tanto aqui, que é a forma como a palavra marmelada
portuguesa começou a desenvolver-se: primeiro em Inglaterra, que depois passou
para França e a seguir para Espanha e Itália, sendo que continuou a ser um doce
de fruta, só que nunca de marmelos, como a nossa…
O que é certo é que o Massialot de 1715, começa por publicar
receitas de marmelade, que são um doce de fruta, mas nunca de marmelo, até porque
marmelo em francês diz-se coing, portanto não fazia sentido…
Depois, em 1747, com Juan de la Mata, que copia as receitas
de Massialot, denominando de marmelade, que, em espanhol, marmelo diz-se membrillo,
portanto, o que eu quero fazer perceber é como é que uma coisa que parecia
pequena, acaba por se passar também em Itália, onde também dizem marmellata,
mas isso ainda está um bocado no princípio…
E em Inglaterra diz-se quince, que eu cito aí, cujo um dos
livros referenciados é o Dicionário de Vegetais, de Richard Bradley, onde
afirma que “o marmelo de Portugal é o melhor”, pois é o que em paralelo vou
encontrar…
Portanto, durante o estudo que eu fiz para este livro que
acabou de sair, o fenómeno da marmelada interessou-me imenso, e, por acaso, já
tinha estudado as marmeladas que aparecem no primeiro livro em Portugal, sendo
as marmeladas brancas e vermelhas de um livro português de 1788, de um anónimo,
mas que é o primeiro livro sobre doces em Portugal, o que é fantástico. Logo,
acho que vou um pouco por aí, mas eu às vezes começo e não sei bem quando é que
sai o livro…
Eu comecei um livro sobre a matança do porco e que as
editoras nunca se manifestaram muito interessadas. É estranho, mas eu
queria-lhe dar uma visão cultural! O que é certo é que as editoras contestaram
sempre porque isto precisa de fotografia…
No meu primeiro livro sobre Transmontanices, no meu terceiro texto existe a descrição da matança do porco na minha casa… Mas eu tenho autorização para escolher, e na hora, desenhos e pinturas de Graça Morais, pois é arte!
(texto escrito por Mónica Rebelo, fundadora da Revista P´rá Mesa)
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