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quarta-feira, 16 de março de 2022

“Trigo” por Miguel Boieiro



O meu avô contava a seguinte história que considero de antologia:

Foi aí nos anos trinta do passado século. Havia casório em ambiente campestre e veio gente de Lisboa para a boda. Fora do improvisado barracão onde decorria o “copo-de-água”, as searas pareciam um mar com espigas ondulantes embelezando a paisagem. Então alguém perguntou que planta seria aquela, ao que o meu avô respondeu - É trigo! - Ah então este é que é o tal trigo? admirou-se o citadino que comia pão todos os dias, tinha ouvido falar do cereal, mas nunca o tinha visto.

A verdade é que o trigo tem sido, ao longo da História, o vegetal mais determinante da evolução humana. Foi ele o principal fautor do sedentarismo dos povos do lado de cá, ou seja, do que se costuma chamar Ocidente. Em termos simplistas podemos até admitir que só quando se iniciou a domesticação do trigo é que a humanidade ultrapassou a sua fase pré-histórica. As grandes civilizações mesopotâmicas alavancaram poderio económico e militar com a farta produção deste cereal nas férteis terras do Tigre e do Eufrates. Ele permitiu alívios das fomes cíclicas, desencadeou um desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes, fomentou a acumulação de riquezas, mas também impulsionou a ocorrência de sangrentas guerras, tal como hoje acontece com o petróleo. Note-se que até no tocante à expansão ultramarina portuguesa, iniciada com a conquista de Ceuta no norte de África, a obtenção deste cereal constituiu uma das principais motivações. Com efeito, Ceuta era, nessa altura, um dos mais importantes portos cerealíferos e Portugal debatia-se com aflitiva escassez para alimentar a sua faminta população.



Sublinhe-se, aliás, que a crónica insuficiência de trigo constituiu sempre um grave problema porque o País raramente conseguiu produzir quantidades necessárias para cobrir os consumos. Lembro-me que nos meus tempos de infante, promovia-se por todo o lado a Campanha do Trigo, visando ferverosamente a subsistência alimentar. A produção era então fortemente subsidiada. Semeava-se trigo em qualquer parcela sem atender às condições edafoclimáticas dos terrenos. Cada município tinha o seu celeiro gerido pela Federação Nacional dos Produtores de Trigo que mais tarde passou para a Empresa Pública de Abastecimento de Cereais (EPAC). No fim da primavera e antes da ceifa o rapazio, batucando latas e paus, percorria as propriedades num banzé infernal para enxotar os pássaros e a gritar “fora pardalada, sai do trigal e vai pró faval”. As debulhas eram realizadas em eiras onde mecanicamente se separava o grão e se enfardava a palha, também um bem precioso para alimentar o gado. Mas apesar de todos os incentivos e da utilização dos fertilizantes da Companhia União Fabril (CUF), não se lograva atingir o objetivo pretendido. A produtividade continuava baixa e os solos começaram a ficar exauridos. Atualmente, a crer em notícias recentes, a produção nacional minguou, de tal maneira, que só dá para duas semanas de normal consumo.

Para trás ficou o protecionismo, com a “Semana do pão” e o “pão político” Alguém ainda se lembra do pão de 17? Era meio quilo de pão escuro e não chegava a custar 1 cêntimo na nossa atual moeda. Mas é bem verdade que o “panito” não tem agora a relevância alimentar e social de outros tempos. Para complicar vieram as modas do trigo transgénico e do malfadado glúten considerado hoje quase como um veneno. Até há pessoas que têm medo de comer pão. Consideramos tal um tremendo erro porque o pão, se bem fabricado com farinha integral de boa qualidade, continua a ser um dos melhores alimentos ao dispor da humanidade.





Cabe lembrar que estas despretensiosas croniquetas que tenho vindo a elaborar, se inserem no campo da fitoterapia e por isso, para poupar espaço e não enfadar os queridos leitores não falarei mais de pães, bolachas, massas, cuscuz, seitan, nem de outros alimentos e guloseimas proporcionados pela farinha de trigo.

Vamos então ver como é que o Triticum sativum, antiquíssima gramínea da família das Poaceae, rica em amido, glúten, enzimas, ácido fólico, cobre, ferro, fósforo, magnésio, cálcio, potássio, oligoelementos, vitaminas PP, E, B1, B2, B5 e B6… pode ter utilidades na medicina popular. Como é sabido, o trigo é uma planta anual com pelo menos 30 subespécies geneticamente diferenciadas, composta de colmos eretos, de folhas planas e delgadas com bainha invaginante, raiz fasciculada e inflorescência terminal em espiga.

Nos tratados de fitoterapia muito poucos abordam este cereal. Entre as honrosas exceções, gostava de realçar “Ervas, Usos e Saberes” do meu saudoso amigo José Salgueiro que dedica ao trigo três robustas páginas. Vale a pena ler porque é um saber de experiência feito. Refiro apenas a parte em que menciona o trigo germinado, considerado ideal para combater a impotência sexual, tonificar o sistema nervoso e mineralizar o organismo.



Por sua vez, Raul d’Oliveira Feijão acrescenta que o farelo do trigo se emprega internamente, misturado no caldo da sopa, contra a prisão do ventre e externamente em banhos ou loções para as doenças da pele, sendo muito aconselhável para os “cuidados de beleza das senhoras”. Externamente também se emprega o óleo de germe de trigo queimado como excelente tópico calmante de erupções cutâneas dolorosas, como a zona.

 O famoso Doutor Vander recomenda o suco das espigas do trigo, ainda não amadurecidas, para os débeis de estômago e convalescentes.

Outros autores sublinham o extraordinário potencial do trigo para os casos de anemia, enurese, esterilidade, nervosismo, raquitismo, obstipação, doenças cardíacas, desnutrição, afeções da pele, etc., etc.

Muito mais fica por dizer. Fica apenas este breve lampejo para abrir o apetite aos curiosos e quiçá, aos que nunca viram a planta-mãe da nossa subsistência alimentar.





Miguel Boieiro.

(texto da autoria de Miguel BoieiroVice-presidente da Direção da SPN)

  

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