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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

"Papoila-da-Califórnia" por Miguel Boieiro


Gentil convite para salutares caminhadas e observação da flora local levou-me, na alta primavera, à Serra do Caramulo. 


Depois de Tondela, a estrada é assaz complicada por curvas e contracurvas e é sempre a subir até se chegar à encantadora vila do Caramulo. Ficámos principescamente alojados no Hotel Beecaramulo-apiturismo, uma unidade moderna com atrativos vários ligados ao mel e seus derivados que, só por si, encantam o visitante e validam a viagem. A extrema simpatia dos proprietários e o ambiente familiar são acrescidos atributos que nos impelem a divulgar o original empreendimento composto por instalações temáticas, cujas nomenclaturas vão do mel, ao própolis, à geleia-real, ao pólen... São ainda complementados com as chamadas “suites montanha” que fornecem panoramas únicos da atrativa região. Noutros tempos, a vila do Caramulo foi intensamente frequentada devido às suas especiais condições para o restabelecimento de tuberculosos e doentes afins. Ficaram célebres os sanatórios e as casas de repouso que atraiam, não só os enfermos, mas também as elites e a alta burguesia endinheirada que aqui vinham passar as férias estivais. A existência de dois notáveis museus que ainda persistem, um sobre pintura e escultura e outro sobre o automóvel, compõem a excelência do lugar.

Esta introdução vem a propósito da flora multifacetada do Caramulo. Ela deriva da influência climática atlântica e mediterrânica, da altitude e da configuração da serra que é paralela à linha de costa. Este último facto faz com que a evaporação oceânica, ao elevar-se, esbarre frontalmente com as montanhas, ocasionando precipitações. Diz-se, inclusive que, em todo o Continente, é no Caramulo que ocorre mais chuva.

Bem, mas o que mais me surpreendeu nesta visita foi a existência, em razoável quantidade, de umas lindas papoilas amarelas. Nunca tinha visto tantas em conjunto. Lamentavelmente, o magnífico Guia da Flora Vascular da Serra do Caramulo, de Pedro Ribeiro, contém muitas preciosidades, mas esqueceu-se de mencionar a que me refiro.  Falo da Eschscholzia californica da família das Papaveraceae, conhecida popularmente, em vários idiomas, como papoila-da-califórnia. Esclareça-se que a primeira palavra desta designação científica, de tão arrevesada pronunciação, deve-se ao nome do cientista alemão que a descobriu. Já o segundo nome não oferece quaisquer dificuldades de entendimento. Estas papoilas são nativas das Califórnias, ou seja, do Estado da Califórnia, integrado nos EUA e da Baja Califórnia que pertence ao México. Provavelmente as suas sementes foram trazidas para a Europa por motivos ornamentais. Não sabemos, contudo, quem as trouxe para a vila do Caramulo onde estão viçosas e duradouras como se de lá fossem oriundas. O conhecido “site” Flora-on refere cerca de uma trintena de registos desta planta de encantar, espalhadas por todo o país, mas, curiosamente, é no Caramulo onde há maiores referências.

Ora, a nossa Eschscholzia (fixem bem, porque é a última vez que escrevo este palavrão germanófilo) é uma planta perene ou anual com folhas glaucas (verde azuladas), alternadas, divididas em segmentos lobados arredondados. As flores são simples, aparecendo solitárias no cimo de cada haste. As quatro pétalas brilhantes de coloração amarela ou alaranjada, que se fecham à noite, ou quando há frio e mau tempo, são de textura sedosa. As numerosas sementes escuras repousam em cápsulas estreitas, mas, por que são deiscentes, a sua dispersão fica facilitada. As raízes são pivotantes.

Aprecia o clima frio onde floresce com maior intensidade. Contudo, a planta não costuma resistir às geadas. O mesmo não acontece às sementes que têm uma excelente dormência e germinação, divulgando a espécie de forma abundante. Em alguns países onde foi introduzida é mesmo considerada uma planta invasora que precisa de ser controlada.

Constituintes químicos: alcaloides isoquinoleicos, cuja estrutura é semelhante à da morfina, flavonoides, carotenos e ácidos vários.

Propriedades fitoterápicas: vasodilatadora, analgésica, espasmolítica, antibacteriana, antifúngica, anti-inflamatória, antidepressiva, sedante do sistema nervoso e hipnótica suave.

É excelente soporífero, adequado para combater as insónias, não provocando dependência.

O volumoso “Gran diccionario ilustrado de las Plantas Medicinales”, do Dr. José Luís Berdonces, com 1367 páginas e considerado um dos livros mais completos sobre fitoterapia, recomenda o infuso do pó das flores e raízes à razão de 5 a 10 gramas por chávena, para combater a ansiedade, o nervosismo e a insónia. Acrescenta ainda que é eficaz no tratamento da enurese noturna para evitar que as crianças façam chichi na cama. Previne, todavia, que as doses demasiado fortes poderão provocar uma discreta depressão respiratória.

Convém acentuar que a papoila-da-califórnia é hoje utilizada, quase exclusivamente, como planta de jardim, embora os compêndios refiram que as sementes podem servir para produzir óleo, sendo o mesmo comestível. Quanto à fitoterapia, não obstante as indicações recolhidas, deve evitar-se prudentemente os usos espontâneos, e seguir sempre os conselhos das pessoas habilitadas cientificamente.



 (texto da autoria de Miguel BoieiroVice-presidente da Direção da SPN)


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